Por Paulo César Correa Borges
Para os simples mortais, a coisa é diferente. Como é vedado aos cidadãos fazerem justiça com as próprias mãos, o devedor contumaz é levado às barras da Justiça, para ser compelido a pagar. O comerciante devedor, se não paga, sujeita-se ao processo de recuperação judicial ou é declarada a sua falência e um administrador judicial é nomeado para a gestão do seu patrimônio e pagamento dos credores. Aos devedores que não têm aqueles instrumentos de preservação da pessoa jurídica, podem se socorrer da ação de insolvência civil. Tanto numa como na outra situação busca-se instrumentalizar a satisfação do crédito devido, e a lei e o Judiciário são implacáveis.
Para os municípios que foram vítimas de maus gestores, maus pagadores, nem intervenção prevista na Constituição tem sido decretada, apesar da previsão da possibilidade de intervenção do Estado no município que não cumprir ordem judicial, que ocorre quando manda pagar um crédito reconhecido por sentença transitada em julgado, e que é representado pelo instituto do precatório.
O poder político que estabelece uma teia de compromissos e, por vezes, mecanismos de impunidade, fazendo prevalecer também o descumprimento da legislação de regência das finanças públicas, pode ser refreado diante do processo legislativo que afronta a Constituição Federal, a qual não compactua com o mau pagador público e nem com aqueles que se valem de processos formais de alteração legislativa afrontando garantias fundamentais (coisa julgada; ato jurídico perfeito: abono permanência) para alterar obrigações decorrentes de decisões judiciais, que têm natureza material.
A PEC 66/2023 traz na sua essência um propósito de rolar as dívidas de municípios já constituídas como certas e devidas, por meio da expedição de precatórios por decisão do Poder Judiciário, e com trânsito em julgado, que é cláusula pétrea, e que não pode ser objeto nem de deliberação pelo Congresso, conforme prevê o artigo 60, parágrafo 4º., inciso IV, da Constituição Federal. Essa é a razão pela qual a proposta do Congresso tem merecido a denominação de calote em diversas manifestações de entidades vinculadas a credores de precatórios.
Apenas os atuais gestores púbicos se beneficiarão da rolagem da dívida representada pelos precatórios, já que devem pagar os créditos dos precatórios, mas serão autorizados a deixar o pagamento para futuros gestores e, se estes pagarem no futuro, já será para os herdeiros dos credores, pois estes já sofreram violações a seus direitos, demandando a intervenção do Judiciário, e de novo não receberão em vida, diante do longo tempo esperado para reconhecimento e pagamento: décadas! Mais do que calote, trata-se de grave violação de direitos humanos que poderão ser levadas ao Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos.
Paulo César Corrêa Borges é coordenador de Associativismo da AFPESP.