Do Império aos dias atuais, passando pela República e Ditadura Militar; veja 10 livros de autoria de servidores públicos que marcaram o Brasil
Por Andréa Ascenção
Lima Barreto, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Euclides da Cunha, José de Alencar, Itamar Vieira Júnior e Lilia Guerra têm uma ligação para além do mundo literário. Todos ingressaram no serviço público e suas obras, frequentemente, retrataram a pluralidade do Brasil a partir do que os escritores vivenciaram também em suas áreas de atuação.
Neste 28 de Outubro, Dia do Servidor Público, a AFPESP homenageia todas as categorias. “É uma oportunidade de revisitar ou conhecer clássicos que caem no vestibular; além de obras recentes que se já tornaram sucesso de público e crítica. Os servidores conhecem tão bem o povo brasileiro – porque o serve em todas as áreas essenciais –, que suas obras são capazes de iluminar o passado para que possamos compreender quem somos hoje e planejar um futuro em que a diversidade possa encontrar inclusão”, disse o presidente da AFPESP, Artur Marques.
Lima Barreto
Nascimento: 13 de maio de 1881
Falecimento: 1º de novembro de 1922
Naturalidade: Rio de Janeiro, RJ
Em 1915, Lima Barreto, escriturário do Ministro da Guerra, publicou “Triste fim de Policarpo Quaresma”, a história de um funcionário público nacionalista e idealista, que tenta defender as tradições e a cultura brasileira, mas acaba sendo perseguido e ridicularizado. Ambientada no Rio de Janeiro, sua obra mais célebre, uma sátira à República Velha e ao positivismo, revela o estigma social imposto tanto ao protagonista quanto ao próprio autor.
As obras de Lima Barreto, um homem negro, de origem pobre, cuja avó materna, Geraldina Leocádia da Conceição, foi escravizada e alforriada, são marcadas por denunciar o racismo estrutural.
Graciliano Ramos
Nascimento: 27 de outubro de 1892
Falecimento: 20 de março de 1953
Naturalidade: Quebrângulo, AL
Graciliano Ramos foi diretor da Imprensa Oficial e da Instrução Pública de Alagoas e inspetor federal de ensino secundário do Rio de Janeiro (RJ). Sua obra “Vidas secas” (1938), sobre uma família de retirantes que luta contra a seca e a miséria no sertão nordestino, recebeu, em 1962, o Prêmio da Fundação William Faulkner (EUA) como livro representativo da Literatura Brasileira Contemporânea. Já “Memórias do cárcere" (1953), publicada postumamente, é inspirada na perseguição política e a repressão do governo de Getúlio Vargas que Graciliano sentiu na própria pele.
Em 3 de março 1936 ele foi preso em Maceió (AL) e levado para o Rio de Janeiro sob a acusação de ser comunista. Em 3 de janeiro do ano seguinte foi libertado no por falta de provas. Em 1945, a convite de Luís Carlos Prestes, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1963, “Memórias do cárcere" foi adaptada para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, que levou o Prêmio Cinema de Arte, na categoria de Melhor Filme para a Juventude e o Prêmio Office Catolique de Cinéma, durante o XVII Festival Internacional de Cinema de Cannes.
Lygia Fagundes Telles
Nascimento: 19 de abril de 1918
Falecimento: 3 de abril de 2022
Naturalidade: São Paulo, SP
Lygia Fagundes Telles é filha do promotor público Durval de Azevedo Fagundes; trabalhou na Secretaria de Agricultura, atuou como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo e presidiu a Cinemateca Brasileira.
Paulistana, Lygia Fagundes Telles faz parte da terceira geração modernista ou pós-modernismo. A autora driblou a censura militar, com o romance “As meninas” (1973), cujas personagens principais, jovens universitárias, estavam à frente de seu tempo, contrariando o ideal feminino e resistindo à repressão de um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, a ditadura militar. Três anos mais tarde, Lygia Fagundes Telles integrou uma comissão de escritores que foi a Brasília entregar ao então ministro da Justiça, Armando Falcão, um manifesto assinado por mais de mil intelectuais brasileiros contra a censura durante a ditadura militar.
Em uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 1995 e reproduzida pela Revista Continente, a servidora pública afirmou: “Parti da realidade para a ficção. Sei que em estado bruto as minhas meninas existem, estão por aí”.
Ao longo de sua carreira, a escritora viu seus livros publicados em diversos países, colecionou prêmios como Jabuti e Camões, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Brasília (UnB) e ocupou a Cadeira nº 16, da Academia Brasileira de Letras.
Machado de Assis
Nascimento: 21 de junho de 1839
Falecimento: 29 de setembro de 1908
Naturalidade: Morro do Livramento, RJ
Machado de Assis foi aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, mas ingressou na Administração do Estado como funcionário do Diário Oficial. Trabalhou na Secretaria de Agricultura e se aposentou como diretor-geral da Contabilidade no Ministério Federal da Indústria, Viação e Obras Públicas.
O carioca foi autodidata e se destacou tanto no campo literário quanto jornalístico. Era filho de escravizados alforriados e aos 49 anos testemunhou o fim da escravidão no Brasil.
A foto é do projeto “Machado de Assis Real”, que buscou resgatar a verdadeira imagem do autor, uma vez que com o passar dos anos, suas fotos foram “retocadas” para esconder a negritude de um dos maiores expoentes da literatura brasileira. Foto: divulgação.
Considerado o maior expoente do realismo social, introduziu o estilo no Brasil com o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), uma crítica às elites econômica, política e culturais da época, principalmente à sociedade escravocrata, que reverbera problemas sociais até hoje.
Machado de Assis também foi um dos fundadores e presidente da Academia Brasileira de Letras. No centenário de morte do autor, sua obra completa foi disponibilizada, em formato digital, a partir de uma parceria entre o Portal Domínio Público, a biblioteca digital do MEC, e o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina.
Guimarães Rosa
Nascimento: 27 de junho de 1908
Falecimento: 19 de novembro de 1967
Naturalidade: Cordisburgo, MG
Guimarães Rosa se formou, em 1930, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. Na sequência, prestou concurso público e se tornou capitão médico da Força Pública do Estado de Minas Gerais. Também foi diplomata, cônsul em Hamburgo (Alemanha), secretário de embaixada em Bogotá (Colômbia), chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura, primeiro-secretário e conselheiro de embaixada em Paris (França), secretário da Delegação do Brasil à Conferência da Paz, em Paris, representante do Brasil na Sessão Extraordinária da Conferência da Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (UNESCO), em Paris, delegado do Brasil à IV Sessão da Conferência Geral da UNESCO, chefe da Divisão de Orçamento, ministro de primeira classe e chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras.
Com a publicação de “Sagarana” (1946), Guimarães Rosa inovou em linguagem e estilo. A obra reúne nove contos que têm como pano de fundo o sertão de Minas Gerais. Ao mesclar elementos regionais, neologismos e emprestar características humanas aos animais, o autor aborda temas universais, gerando identificação em quem o lê.
Em 1961, Guimarães Rosa recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra literária. Pouco depois, em 1963, foi eleito para ocupar a Cadeira 2 da mesma academia, mas só tomou posse em 16 de novembro de 1967, três dias antes de falecer.
Euclides da Cunha
Nascimento: 20 de janeiro de 1866
Falecimento: 15 de agosto de 1909
Naturalidade: Cantagalo, RJ
Euclides da Cunha foi militar por um breve período, após cursar engenharia civil na Escola Politécnica. Como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, em 1897, cobriu a Guerra de Canudos, no noroeste da Bahia. De volta a São Paulo, residiu em São José do Rio Pardo, onde trabalhou como engenheiro, dirigindo e supervisionando as construção da Ponte Metálica, que ligaria o município com Mococa, Caconde e todo o sul de Minas. Nas horas de folga, em sua cabana de sarrafo e teto de zinco, às margens do rio Pardo, escreveu uma das maiores obras pré-modernistas, o livro “Os sertões” (1902), um documento histórico, geográfico e antropológico, que ao mostrar as desigualdade sociais no sertão baiano, lança luz sobre a existência e a extinção dos sertanejos.
“Os sertões” é divido em três partes. Na última, o autor se debruça sobre a Guerra dos Canudos (1896 a 1897), que marca a transição da monarquia para o regime republicano no Brasil.
Aos 43 anos, Euclides da Cunha passou em um concurso para o magistério, mas acabou desistindo de assumir o cargo.
Em 1903 foi eleito para ocupar a Cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras.
Cecília Meireles
Nascimento: 7 de novembro de 1901
Falecimento: 9 de novembro de 1964
Naturalidade: Rio de Janeiro, RJ
Cecília Meireles foi professora de literatura da Universidade do Distrito Federal do Rio de Janeiro. Como jornalista foi enviada para acompanhar as festividades da Semana Santa, em Ouro Preto (MG), onde arrebatada pelo passado da cidade, antes chamada de Vila Rica, mergulhou por 10 anos na história da Inconfidência Mineira.
A poetisa consultou fontes a fim de recuperar os acontecimentos que no final do século 18 levaram à conspiração de uma pequena elite de Vila Rica contra a Coroa portuguesa, principalmente por causa da cobrança do “quinto” – 20% de imposto sobre a quantidade de ouro extraído anualmente. A partir daí escreveu a coletânea de poemas “Romanceiro da Inconfidência” (1953), que reconstituiu a história de Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira.
Cecília integra a segunda geração modernista no Brasil e recebeu diversos reconhecimentos por suas obras, como os Prêmios de Poesia Olavo Bilac, Machado de Assis e Jabuti. Também foi agraciada com o título de “Doutora Honoris Causa” pela Universidade de Déli, na Índia.
José de Alencar
Nascimento: 1º de maio de 1829
Falecimento: 12 de dezembro de 1877
Naturalidade: Fortaleza, CE
José de Alencar foi Lente de Direito Mercantil, do Instituto Mercantil da Côrte, sendo nomeado, quase ao mesmo tempo, diretor da Seção da Secretaria da Justiça e passando logo a consultor; confiado à pasta dos Negócios da Justiça.
Publicada em 1857, sua obra “O Guarani” faz parte do projeto de construção da nação do governo imperial. Na trama, em meio ao engrandecimento da fauna e flora brasileira, um indígena se apaixona pela filha de um colonizador português. Os conflitos que atravessam o relacionamento inter-racial fazem parte dos valores da elite branca da época, que buscava consolidar a figura de um herói tipicamente brasileiro, idealizando os povos originários, ou, em uma leitura atual, estereotipando-os.
O autor é patrono da Cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras.
Do ofício à ficção, da ficção à realidade
Na nova safra de escritores que buscam compreender o Brasil em profundidade, servidores públicos como o geógrafo do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) Itamar Vieira Júnior, 44 anos, transportam as experiências absorvidas durante o expediente para as páginas dos livros.
Autor do fenômeno literário “Torto Arado” – vencedor do Prêmio LeYa (2018), do Prêmio Jabuti (2020) e ficção mais vendida no Brasil em 2021 –, Itamar desenvolve atividades no Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas desde 2006. Assim ele presenciou os obstáculos das famílias brasileiras que dependem da terra para sua sobrevivência.
Com mais de 700 mil exemplares vendidos, “Torto Arado” traz à tona a resistência dos povos quilombolas, suas lutas e ligações com a terra no sertão baiano; além de abordar temas como desigualdades raciais, sociais e de gênero. “Em entrevista para José Eduardo Bernardes, publicada no Brasil de Fato, Itamar contou: “A cada vez que eu escrevo, eu estou pensando em lançar o meu olhar, a minha perspectiva do que é essa história brasileira, o que é este país, que civilização tem seguido aqui, com todas as dores, com todas as mazelas que ainda vivemos.”
Em outro trecho da entrevista o servidor público revela como a verossimilhança que cria expande a realidade dos leitores. “Tanto em ‘Torto Arado’ quanto em ‘Salvar o Fogo’, esse meu olhar se volta para histórias que, para mim, eram muito familiares. Eu estou pensando na minha perspectiva familiar mesmo, nos meus laços de parentesco, nas minhas origens, mas também estou pensando em tudo que eu vivi trabalhando com camponeses e camponesas ao longo do tempo. Eu não diria que eu dou voz aos silenciados. Talvez eu estivesse mesmo entre eles, afinal, essa é minha origem também”.
Recentemente, outro exemplo de ficção baseada na tessitura social veio da periferia de São Paulo. A Folha do Servidor entrevistou a auxiliar de enfermagem do SUS e escritora, Lilia Guerra, 47 anos, que vem despontando com personagens de um lugar que ela chama de lá Fim-do-Mundo.
Servidora pública há aproximadamente 16 anos e associada da AFPESP desde 2012, Lilia lançou em setembro o romance “O Céu para os Bastardos”, cuja protagonista é uma empregada doméstica chamada Sá Narinha, uma representação fiel da categoria no Brasil, país que mais tem trabalhadores domésticos no mundo. São cerca de 6,2 milhões. Desses, 92% são mulheres e dentre elas, 68% são negras, de acordo com dados divulgados em 2018 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Mesmo após a Emenda Constitucional nº 72, conhecida como PEC das Domésticas, que formalizou a profissão, "de cada quatro trabalhadores domésticos no país, três não contam com a proteção da carteira de trabalho assinada", afirmou o economista Rogério Nagamine Costanzi, integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e foi Assessor Especial dos ministérios do Trabalho e da Previdência Social, em artigo publicado no Estadão.
Lilia Guerra segura “O Céu para os Bastardos”, lançado em agosto deste ano. Foto: Thaís Cristina
Folha do Servidor: Em 2017, a filósofa e ativista norte-americana Angela Davis esteve no Brasil pela sexta vez. No auditório da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ela disse: "Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo". Sua mãe e sua avó foram empregadas domésticas. Você também já trabalhou como empregada doméstica e hoje é auxiliar de enfermagem e escritora. Suas filhas, Barbara e Thaís, trabalham com recursos humanos e comunicação. Como você quebrou a “sina da empregada doméstica”?
Lilia Guerra: Parecia uma espécie de rito de passagem. A mulher tornava-se adulta quando conseguia seu primeiro emprego numa “casa de família”. A torcida era pra que a sorte nos contemplasse com uma patroa indulgente. Eu acompanhava minha avó nos lugares em que ela trabalhava. Geralmente, ela transitava pelas residências dos membros dessas famílias. Frequentemente, era “emprestada”.
[Lilia se recorda de ouvir dizerem para sua avó: “Hoje está tudo organizado aqui, Maria. As crianças estão viajando, então você vai limpar a casa da minha mãe, vai passar roupa na casa da minha filha, vai auxiliar minha nora que acabou de ganhar bebê…”]
O mesmo salário para executar tarefas variadas, em lugares diferentes. Minha mãe, às vezes, ia ajudar minha avó, dependendo do tamanho da casa e da quantidade de tarefas a serem executadas. Me lembro particularmente de uma mansão que tinha muitas janelas. Algumas vezes minha mãe e minha tia, ao terminarem o expediente nas casas em que trabalhavam, iam auxiliar minha avó a limpar as vidraças, sem receberem pagamento por isso. Era uma tarefa que necessitaria ser desempenhada por uma equipe e mesmo sem remuneração elas iam ajudar, já que a mãe não poderia sair antes de terminar. Era um resgate. Éramos introduzidas na rotina das casas.
[Em outra ocasião, quando acompanhava sua avó no trabalho, Lilia lembra de ouvir: “Sua neta já está grandinha, Maria. Já pode te ajudar com uma loucinha, uma varrida. É bom porque assim já vai aprendendo a trabalhar.”]
Parecia muito natural que substituíssemos as mais velhas, conforme se retiravam, quando a saúde se esgotava. Para ser bem sincera, decidi mudar o percurso porque, quando as cenas que eu havia assistido por toda a vida começaram a se repetir comigo, eu já sabia qual seria o final da história. Fui a primeira pessoa na minha família a concluir o Ensino Médio. Minha filha mais velha foi a primeira a ingressar na universidade, seguida pela caçula. Ambas estão formadas hoje e outros membros da nossa família por parte de minha mãe também estudam e atuam em áreas profissionais diversas. Sim! A ação não movimenta um único indivíduo.
FS: Por cerca de 5 anos você trabalhou como empregada doméstica. Como migrou para a área da saúde?
LG: Minha mãe e tia, a certa altura, conseguiram empregos em um grande hospital em São Paulo. Minha tia, na equipe de higienização. Minha mãe, como copeira. Assim, começamos a conviver nesse ambiente. Daí, vislumbrei a possibilidade de, como elas, trabalhar também num grande hospital. Elas eram meus espelhos. E me incentivaram. No fundo, acho que as duas desejavam se tornar auxiliares/técnicas em enfermagem, mas não foi possível para nenhuma delas.
FS: Quando você se tornou servidora pública?
LG: Assim que terminei a capacitação, prestei alguns concursos e, desde então, atuo na área de saúde pública. Já trabalhei em unidades básicas e em serviços de pronto-atendimento. Há alguns anos sirvo em equipamentos especializados em prevenção. Portanto, desde que me tornei apta, nunca trabalhei no setor privado.
FS: Quando você teve a oportunidade de mudar de profissão, como as mulheres da sua família (mãe, tia e avó) receberam a notícia?
LG: Quando deixei as atividades como trabalhadora doméstica, minha avó e tia já haviam falecido. Minha mãe me presenteou com o primeiro avental quando anunciei que havia sido convocada para assumir o cargo. Ela chorou, ficou emocionada. Foi muito especial.
FS: Em suas obras você retrata a vida das pessoas que moram na periferia. Por que você escolheu levar a atmosfera e os moradores desses lugares para a sua narrativa?
LG: Moro no bairro Cidade Tiradentes há 37 anos. Morei durante os primeiros 10 anos da minha vida no bairro de Vila Mariana. Nos mudamos no final da década de 1980. Muitas famílias que habitavam regiões centrais das cidades se viram obrigadas a migrar para as periferias. Poucos conseguiram seguir pagando aluguéis cujos valores pareciam ajustados exatamente para provocar a debandada das famílias de classe baixa dos locais que se tornaram nobres para o mercado imobiliário. Higienização. Na mudança, levei comigo o hábito da leitura, fomentado por minha mãe. Morávamos ao lado de uma biblioteca, da qual me tornei sócia assim que fui alfabetizada. Em Cidade Tiradentes, não encontrei uma biblioteca pública. Foi um equipamento que procurei assim que nos mudamos. Com o tempo, alguns espaços comunitários passaram a ser organizados e resistem ainda hoje, com muita dificuldade. Acho que, vivenciar essa carência, a ausência de estrutura e tudo o que o abandono e o descaso podem ocasionar, me levou a ter o desejo de registrar experiências. E os personagens dessas narrativas, de forma natural, somos nós. Nós, que habitamos esses lugares.
FS: Em que situação surgiu a vontade de escrever um livro e como foi o processo de encontrar uma editora para publicá-lo?
LG: O desejo de escrever se deu, primeiramente por uma promessa feita à minha mãe: contar como se desenrolaram os acontecimentos acerca de meu nascimento, história relatada em meu primeiro romance, “Amor avenida”. A publicação foi difícil. Poucos exemplares pagos com muito sacrifício, para ver a promessa cumprida. Eu gostava de escrever desde criança. Composições de texto e redações eram meus exercícios favoritos na escola e a isso atribuo o fato de cedo ter começado meu contato com a leitura. Quando surgiu a ideia de escrever um livro, pareceu-me possível desenvolvê-la. A publicação era o maior desafio, já que eu não tinha nenhuma formação, nem informação sobre como escrever um livro e nenhum planejamento. Por isso, desconhecia também o que poderia ser considerado como obstáculo, como a falta de técnica, por exemplo. Eu comprei um caderno, examinei os documentos dos quais dispunha, coisas como cartas e postais. Passei a entrevistar minha mãe com frequência e a anotar tudo o que ela me dizia. Sim. Foram anos de silenciamento.
FS: Em recente entrevista para o repórter Walter Porto, publicada na Folha de S.Paulo, você revelou que sua meia-irmã por parte de pai disse: "Escrever um livro não é para qualquer um". Como isso afetou a sua vontade de romancear a vida de sua mãe?
LG: Na idade adulta, tive contato com uma irmã (jornalista e escritora), por parte de pai. E contei a ela que também gostava de escrever, anotar. Isso aconteceu antes de eu projetar realmente escrever e publicar um livro. Estivemos juntas apenas duas vezes. Uma delas, numa oficina de escrita que ocorreu numa biblioteca de São Paulo. Me inscrevi para participar e ela era a orientadora. Foi nessa ocasião, durante uma conversa com os participantes que ela me disse isso, que escrever não era algo que pudesse ser realizado por qualquer pessoa. Palavras que eu nunca esqueci. Não digo que foi essa a alavanca para que eu persistisse. Foi uma delas. É importante ressaltar que era um desejo de minha mãe, tornar pública essa passagem de sua vida.
FS: As suas obras são um retrato vivo e fiel de um Brasil que vive às margens da nossa sociedade, no Fim-do-Mundo, onde as pessoas têm uma rotina tão desgastante que vivem menos do que as que habitam os centros urbanos. Ainda assim você se dedica a uma segunda profissão, a de escritora. Não é incomum servidores públicos seguirem esse caminho literário. É coincidência? A que você atribui tantos servidores também servirem à sociedade obras que retratam os diversos Brasis?
LG: Eu acho que escrever também é servir. Não deixo de ser uma agente pública quando escrevo. E, quase sempre, os agentes públicos lidam diretamente com o povo, com os cidadãos. A premissa é ouvir. No caso da minha profissão, ouvir e observar são a base do atendimento. Eu preciso conhecer as necessidades de quem acolho. Acabo formando arquivos internos aos quais recorro espontaneamente quando escrevo. Obviamente, mantendo todas as precauções de segurança e sigilo. Não se trata de nomes, rostos, dados, especificações. São fragmentos que eu coleciono. Presentes da vida.
Foto: divulgação editora Todavia
FS: A coleção de contos “Perifobia” foi finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019. O que você espera do recém-lançado “O céu para os bastardos?”
LG: “Perifobia” foi bem acolhido. É um livro que me trouxe muitas alegrias. A principal delas, o contato com os leitores, as devolutivas. “Rua do Larguinho”, apresenta de forma mais ampla o ambiente onde se passa a maioria das histórias que conto. Inclusive, em “O céu para os bastardos”, procurei evidenciar realidades que assolam os moradores e trabalhadores periféricos através do cotidiano de Sá Narinha, a protagonista, e de seus vizinhos. Se bem que, às vezes, eu fico em dúvida e me pergunto se a protagonista é mesmo Sá Narinha. Sinto que Fim-do-mundo é o personagem principal, na verdade. Eu espero que as pessoas que se identificam com esses relatos se enxerguem inseridas na literatura. Que deixem de ser apenas figurantes. Às vezes, nem isso. Que se tornem visíveis para uma camada da sociedade que se escora e pisa sobre essa base. Que só realiza através da retaguarda dessa base. E que não reconhece isso. Que procurou por tanto tempo fazer com que a base se sentisse desimportante, que tentou esconder e negar nossa importância.
FS: Recentemente, seu rosto ilustrou um jogo de memória criado por alunos da Oficina de Letramento que acontece no Laboratório IFMaker do Instituto Federal Catarinense. O jogo desenvolvido faz parte do programa de Letramento Literário Antirracista, do Campus Camboriú. Quer dizer, seus livros também estão nas salas de aula, onde você, mulher, negra, periférica, foi percebida como um símbolo da luta antirracista no Brasil. Lilia, qual é o peso dessa representação?
LG: Ah! O jogo de memória antirracista… nossa! Uma surpresa bonita. E uma grande responsabilidade. Alguns dos meus livros, sobretudo, “Crônicas para colorir a cidade”, são bastante utilizados em salas de aula e interajo com os alunos leitores quando é possível. Eu preciso confessar que, no começo, sem perspectiva de alcance, sem saber muito bem onde meus livros iriam chegar, se é que iriam, eu escrevia de uma forma, digamos, mais fundamentada no que eu sentia, no que queria contar. Quando constatei que professores utilizam as obras em sala de aula, comecei a imaginar o que os textos despertam nesses alunos e de que forma os atingem. Não quero dizer com isso que eu deva ou possa adaptar formatos para pretender abordar temáticas específicas ou influenciar propositadamente. O texto deve ser livre, assim como as sensações que provoca. Mas, é inevitável pensar que, de alguma maneira, imprimirá alguma nota nesses leitores. Assim como os autores que li deixaram notas impressas em mim.
FS: Lilia, agora algumas perguntas para você completar de bate-pronto.
Ser servidora pública é sinônimo de... liberdade. É propiciar ao cidadão a liberdade de se orientar, de ter um norte. Agenciar a conclusão de suas necessidades e garantir o direito de tê-las concluídas.
E o SUS? É simplesmente o reflexo do princípio que deveria reger todas as coisas no universo. O da igualdade.
Meus livros favoritos são: Ah! Certamente, “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus é o livro da minha vida, apesar de “Diário de Bitita” ser o meu favorito. Eu aprecio muito os livros de Pearl S. Buck também. Os li na adolescência e foram muito importantes para que eu desenvolvesse o hábito da leitura. Atualmente, privilegio a literatura feita por mulheres. Conceição Evaristo, Miriam Alves e Ruth Guimarães são algumas das autoras que li recentemente.
O que me inspira escrever é: Tudo o que respira, me inspira. Posso escrever inspirada por uma canção ou uma paisagem, mas as gentes e os bichos são minhas mais frequentes fontes de inspiração.
Faz parte da trilha sonora da minha vida: “Minha gente do morro”, composta por Jaime e Candeia, interpretada por Clara Nunes. Essa canção integra o LP “Esperança” e o refrão diz: “…mas um dia, hei ver o meu povo feliz a cantar…”. Eu acredito nisso.