Por Luiz Carlos Ladeia
Ela vestia branco. Sinto atração especial por essa cor. Trazia uma joia sobre o peito, de forma duplamente corajosa. Corajosa por expor o adorno, e por deixá-la justamente ali, num porto de repouso dos sonhos mais atrevidos. Chegou e derramou silêncio. À sua passagem as bocas emudeceram, os olhos seguiram os seus passos e convergiram para um andar tênue, esguio, que inspirava sonhos e comentários.
Aos poucos ousei olhar a sua face. Os traços eram leves, marcantes. A boca, um simples risco ondulado, de um brilho inspirador. Tinha uma pele leve, onde fios rebeldes, ciumentos, tinham que ser contidos. E ela o fazia, escorrendo os dedos numa vã tentativa de disciplinar o cabelo solto, cor de mel. Ao lado, os comentários, até então enxutos, secarem de vez.
Ficou no ar a poeira do silêncio, quebrado por vezes por filamentos de suspiros, tilintar de ferros e sinais estridentes de portas que se fechavam à cada despedida de estação.
Para garantir a sua presença ali, me ofereci para ceder-lhe o lugar, mas em respeito aos meus dias acumulados, ela recusou. Aceitou apenas que a ajudasse com os seus livros e pacotes, enquanto liberava um sorriso discreto, para frustração de muitos e para a inveja de todos. Permitiu que eu segurasse tudo; ou quase, é claro.
De vez em quando eu tentava roubar-lhe um olhar. Ela, indiferente, jogava os olhos contra a janela envidraçada do vagão, que respondia com a imagem que o passageiro ao lado impedia que eu visse. Essa espera demorou umas três estações, uma eternidade quando se espera por essas coisas.
Na qualidade de simples copo d’água, senti-me invadido por um balde. Se eu disser que eram verdes, tudo bem. Mas não era só. Era um verde-verniz, brilhante. Eram olhos grandes, agressivos. Bebiam as imagens e eram sorvidos por elas... Procurei dentro deles a minha imagem ali refletida, mas não encontrei. Mais uma frustração!
Fiquei naquele sonho, sem perceber o novo sorriso dela. Lentamente, aquela fada foi colocando a mão sobre um dos pacotes, e continuamos com olhares fixos, um no outro. O calor de sua mão atingiu a minha, numa simbiose infinita, ainda que involuntária. Seus lábios liberaram o mesmo sorriso perfeito, embora diferente do primeiro. Foi ele que alertou-me de que um dos seus pacotes havia caído...
Precavida, antes que algum livro fosse ao chão, ela repetiu o sorriso, recolheu os seus pertences, agradeceu e rumou para a porta. A Sé a esperava. Fiquei só, com a consciência de que, pela primeira vez, consegui medir a intensidade de um sonho: três estações!
Luiz Carlos Ladeia é jornalista, escritor e ocupante da cadeira nº 2 de Letras da Academia de Letras, Ciências e Artes (ALCA) da AFPESP. |