Por Maria Fernanda A. Saiani Vegro
Sob contexto de uma epidemia de solidão grassando no mundo, governos de inúmeros países estão sendo impelidos a estruturarem políticas públicas a partir de dados coletados com o emprego de diversas metodologias, em universidades, órgãos governamentais ou institutos independentes, para mitigar os impactos negativos na saúde mental e física das suas populações.
Cabe ressaltar que efeitos deletérios da solidão podem ser verificados em diferentes camadas etárias, tanto em idosos com famílias cada vez mais reduzidas, como em jovens que se apartam da realidade com o uso compulsivo da tecnologia digital.
Certamente, a solidão – diferentemente da solitude, que é o estar sozinho de modo positivo, seja numa leitura ou na contemplação da natureza – afeta a saúde física e mental dos indivíduos, pois a conexão entre as pessoas se encontra na gênese da espécie humana.
Será o crescimento da ausência de laços sociais, um sintoma da sociedade contemporânea? Um fenômeno global de ordem política?
Em resposta a essas questões, o pioneirismo da criação de um Ministério da Solidão ocorreu no Reino Unido, em 2018, devido à iniciativa da parlamentar Jo Cox, representante do partido trabalhista. De acordo com De Almeida (2020), o Reino Unido contava na altura com 64,65 milhões de habitantes e 9 milhões de pessoas que viviam absolutamente sozinhas, ou seja, 13,9% da população.
Para o autor “A solidão não é um sentimento simples, mas um misto de sensações como angústia, dor, medo e tristeza, que foi mudando ao longo do tempo, com dimensões sociais e políticas”.
Em maio de 2023, o cirurgião-geral Vivek Murthy, principal porta-voz dos problemas de saúde pública nos Estados Unidos divulgou um relatório que apontava a existência de uma epidemia da solidão que cresceu silenciosamente no país durante anos. O cirurgião afirmou que as pessoas nos EUA se sentem muito solitárias e isso representa um problema grave de saúde, pois o “impacto na mortalidade de estar socialmente desconectado é semelhante ao de fumar 15 cigarros por dia” (MURTHY Apud ÁVILA-CLÁUDIO, 2023).
Segundo esse estudo, dados mostram que a cada dois americanos, um sofre de solidão, ou seja, 50% da população norte americana sente-se afetada pelos danos do isolamento social, fato que tem levado autoridades de saúde exigir o desenho de políticas públicas, no mesmo patamar das políticas já consolidadas no país que tratam do abuso de drogas e da obesidade (COSTA, 2023).
No Japão, recentemente foram identificados dois fenômenos sociais alarmantes: o Kodokushi e o Hikikomori. O primeiro trata da morte solitária, quase sempre de idosos em apartamentos, cujos corpos só são descobertos depois de um longo período de tempo. De acordo com o Kyodo News Japan (2024), dados da Agência Nacional de Polícia (ANP) informam que 68.000 pessoas morrem de Kodokushi anualmente no Japão, sendo 80% idosos com 65 anos ou mais. Já o Hikikomori define a triste realidade para parte da população japonesa da inexistência de vínculos sociais, considerando-se um período maior de seis meses, que pode afetar diferentes faixas etárias (MUNDO NIPO, 2024).
Lemos (2024) chama atenção para 1,5 milhão de jovens que se encontram hoje no Japão isolados socialmente, muitos deles, vivendo no espaço do seu próprio quarto.
Em abril de 2024, o Japão promulgou uma Lei com objetivo de promover o enfrentamento da solidão como uma questão de relevância nacional que atinge por volta de 39% de sua população. A nova lei convoca a formação de conselhos regionais que contam com grupos de apoio às pessoas isoladas socialmente (SILVA, 2024).
Também, no período da pandemia, o suicídio no Japão cresceu significativamente. Dados do governo japonês revelam cerca de 21 mil suicídios, destacando-se entre as principais vítimas mulheres e estudantes. Tal quadro já havia impulsionado em 2021 a criação do Ministério da Solidão, cujo objetivo consiste em realizar campanhas e políticas públicas voltadas à saúde mental da população japonesa, sejam elas para a prevenção do suicídio ou para os cuidados das pessoas que se encontram sozinhas (DE OLIVEIRA, 2021).
Em Seul, as "mortes por solidão" têm aumentado todos os anos. Dentre 84% dos casos, destaca-se a população masculina, principalmente entre 50 e 60 anos de idade, que representa 50% desses óbitos. Por isso, o governo sul-coreano vai investir na cidade US$ 327 milhões com o objetivo de combater a solidão (LEMOS, 2024).
Já no Brasil, a pesquisa online realizada pela Consultoria Ipsos*, em 2021, a partir da percepção de 23.004 pessoas entre 16 e 74 anos, em diversos países sobre os impactos da Covid-19, revelou que o sentimento de solidão se mostrou recorrente em 50% dos 1.000 brasileiros entrevistados. Dentre os 28 países participantes da pesquisa, o Brasil aparece na liderança do ranking (CALLIARI, 2023).
Nessa perspectiva, que une tanto dados objetivos como aspectos subjetivos, a arte pode ser considerada uma linguagem potente para refletir essas questões que se refletem na sociedade contemporânea, instigar o pensamento crítico e a compreensão do mundo histórico.
A angustia causada pelo sentimento de solidão, a fragilidade de vínculos sociais, o silêncio, o vazio existencial, a impossibilidade da canalização da expressão humana como potência de criatividade, pensamentos negativos, a dificuldade de comunicação ou melancolia que se instauram tacitamente nas mentes humanas, foram retratados com maestria pelo pintor nova-iorquino Edward Hopper (1882-1967), integrante do movimento moderno nas artes.
Espaços como cafeterias, salas de cinemas e de teatros, quartos de hotel, vagões de trem, estradas, áreas externas, casas e salas completamente vazias, se vinculam com um tempo que se estende na espera, preenchido por personagens tristes, imersos no mutismo, no devaneio. Em resposta à pergunta de Brian O’ Doherty a respeito do caráter solitário de seus personagens carregados com uma névoa de pessimismo, Hopper, beirando os 60 anos de idade afirma: “Pessimismo? Talvez”. Porém, com o envelhecimento, quem não seria pessimista? (O’ DOHERTY, 1974, p.13).
Esse pessimismo que se apresenta com o avanço da idade, muitas vezes com o encolhimento do núcleo familiar, a perda de amigos, assim como, a depressão, a constatação de doenças físicas e mentais e uma paralisia frente ao mundo social, foi fielmente descrito no último filme do brilhante cineasta espanhol Pedro Almodóvar: Um quarto ao lado (2024). No filme há a citação de um quadro de Hopper: Pessoas ao sol (1960), que homenageia o artista estadunidense. O quadro elaborado com cores solares, vibrantes, representa pessoas bem vestidas, sentadas em cadeiras de praia alinhadas simetricamente, expostas ao sol, mergulhadas em mundos isolados, introspectivos.
Não por acaso, esse quadro aparece na sala da belíssima casa alugada por Martha Hunt, representada pela atriz Tilda Swinton, para usufruir seus últimos momentos, pois se encontra num estágio de câncer avançado sem qualquer fagulha de esperança quanto ao prolongamento de sua vida. Martha propõe a sua velha amiga Ingrid, interpretada pela atriz Juliane Moore, permanecer num quarto ao lado, no papel de âncora de apoio para quando chegasse a hora da sua morte provocada por um medicamento adquirido no subterrâneo da internet. Passados alguns dias, numa manhã, quando Ingrid se ausenta da casa, Martha se veste com um terno amarelo (como os personagens da tela de Hopper) e se senta numa cadeira de praia na varanda da casa, para enfim concretizar seu desejo de induzir a eutanásia.
Entretanto, o que chama atenção no filme, é que Martha, uma repórter de guerra, com experiências riquíssimas profissionais, mas sem qualquer laço familiar, nunca construiu um vínculo com sua única filha e muito menos pavimentou o caminho de sua morte com as alegrias dos possíveis encontros, da comunicação sensível que envolvem os relacionamentos significativos. Após sua morte, é Ingrid que relata à filha emocionada de Martha – que desconhece a figura materna – as dores, qualidades, fraquezas, o amor, a força da mãe, que estarrecem a jovem com a constatação da similaridade de personalidade entre ambas.
Também, durante o período de incubação da eutanásia de Martha, um amigo de Ingrid vai visitá-la num bar, nas cercanias da casa alugada por Martha, o cientista Damian, interpretado pelo ator John Turturro. Ele discute enfaticamente a questão do aquecimento global, aponta o papel deletério do neoliberalismo para a sociedade, critica o crescimento da extrema-direita e do fundamentalismo religioso, mas conta, que decidiu cortar totalmente a comunicação com o seu filho pelo motivo da sua esposa ter engravidado do terceiro filho.
Consequentemente, o que se assiste no filme de Almodóvar são vidas despedaçadas, ausência de comunicação, personagens solitários, bem-sucedidos na esfera profissional e absolutamente vulneráveis nos relacionamentos humanos associados aos laços de afetividade mais íntimos. Um triste retrato da epidemia da solidão.
Para o psiquiatra Lucas Spanemberg, do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) a coesão social atua como um núcleo de proteção para os indivíduos. Spanemberg descreve uma pesquisa realizada pela Universidade de Harvard que acompanhou centenas de indivíduos por 80 anos, cujos resultados determinaram que o “fator mais importante para se sentir feliz no final da vida não era sucesso financeiro, emprego dos sonhos, fama ou dinheiro, mas, sim, coesão social” e a “grande variável associada à sensação de felicidade foi justamente ter relações importantes e significativas ao longo da vida” (SPANEMBERG apud BIERNATH, 2023).
“Encontros alegres” ou o sentimento de felicidade foram virtuosamente descritos pelo filósofo Baruch Spinoza (1632-1677) como capazes de potencializar a existência humana e possibilitar sua ascensão para um estado de perfeição maior, enquanto, o afeto da tristeza, predominantemente presente no sentimento de solidão, enfraquece e aniquila o agir humano. Desse modo, para o autor a conduta ética se traduz na tarefa ativa e criativa, por parte dos indivíduos, de priorizar os afetos positivos e ao mesmo tempo, favorecer o aumento da potência do existir dos outros com quem se relaciona e vice-versa (SPINOZA, 2008).
Então, no cenário de epidemia da solidão, torna-se inquestionável o papel da AFPESP na difusão de atividades nas esferas da educação, cultura, esportes, na formação de grupos de interesse com encontros regulares, no planejamento de passeios para seus associados, pois, relações sociais positivas contribuem de modo decisivo para o bem-estar físico e mental dos indivíduos.
Evento "Uma Jornada de Encontro", realizado na Unidade CBI. Foto: Foto: Vinicius Marques da Silva
Outra questão que merece destaque é o ambiente acolhedor, o espaço seguro que muitos associados sentem ao participarem das atividades oferecidas pela AFPESP. Christina Bonnafé afirma que partilhar poemas, textos, ideias, temas específicos, às terças-feiras pela manhã, com o grupo de escritores lhe traz grande alegria. Cleyde Marino, membro do mesmo grupo, comenta que o simples fato de estar na AFPESP, trocar impressões, conversar com outras pessoas, se traduz numa metáfora do paraíso.
Também, Hosaná Dantas, gerente da Coordenadoria de Educação e Cultura da AFPESP enfatiza a relevância para o associado de se reunir e “jogar conversa fora”, isto é, uma forma de linguagem que poderia ser considerada sem qualquer utilidade, mas que encontra ressonância na expressão do livre pensamento, das emoções e afetos que se potencializam positivamente no encontro com o outro.
Café Filosófico com o professor Maurício Dell'Osso, realizado na Unidade CBI. Foto: Elisa Izumi Torres
Desse modo, se constrói conhecimento ou uma espécie de ócio criativo como defende o sociólogo Domenico de Masi (2000, p.326), que exige uma educação para a solidão, para a companhia, para a solidariedade. “Significa como se evita a alienação provocada pelo tempo vago, tão perigosa quanto a alienação derivada do trabalho”.
Nesse sentido, as atividades e os ambientes oferecidos pela AFPESP aos seus associados representam um antídoto contra a epidemia da solidão que grassa, principalmente nas grandes cidades do mundo. Esses espaços interpelam as pessoas a saírem de suas casas, a realizarem um trabalho artístico, o exercício da criatividade, uma atividade física, discutirem temas de interesse, aprenderem uma nova língua, tocarem um instrumento, usufruírem de passeios culturais ou viagens, em permanente contato com sua alteridade.
Logo, na contramão dos quadros de Hopper, do filme de Almodóvar, nos quais persiste de modo perturbador a ausência de comunicação, o alheamento, os sentimentos negativos, e dos dados expostos acima que comprovam de fato uma epidemia de solidão que assola o mundo, a AFPESP cumpre um papel importantíssimo no combate ao isolamento social de seus associados, na promoção de “encontros alegres” com trocas de afetos e experiências positivas.
Sem dúvida, faz-se necessário no Brasil, a criação de mais espaços ou ações para possibilitar o encontro de pessoas, onde não haja o pesado fardo do cumprimento das obrigações cotidianas e se escape da lógica do consumo.
Assim, na falta de um Ministério da Solidão no país, que o trabalho da AFPESP sirva de inspiração e exemplo para a propagação de mais iniciativas públicas e/ou privadas que considerem os aspectos objetivos, os dados quantificáveis, mas que não negligenciem a subjetividade humana, significativamente presente nas trocas sociais, muitas vezes na forma de nuances, capaz de enriquecer as perspectivas do indivíduo sobre o mundo e provocar a empatia, a alegria, pois no cenário contemporâneo a questão da epidemia da solidão merece ser amplamente discutida e considerada com grande urgência!
* O Instituto Ipsos é uma empresa global, com sede em Paris, na França, especializada em consultorias e pesquisas que visam compreender a sociedade e o mercado.
Maria Fernanda Andrade Saiani Vegro é associada da AFPESP, pesquisadora multidisciplinar, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, mestre em Estética e História da Arte e doutora em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Suas pesquisas tratam de temas como criatividade, arte, cultura, subjetividades contemporâneas, tecnologia digital, marca, mercado. Atualmente trabalha com revisão de textos e produção de conteúdo. Autora do livro: O desenho arquitetônico: fenomenologia e linguagem em Juan Villà (2020).
Referências bibliográficas:
ÁVILA-CLAUDIO, Ronaldo. Há uma epidemia de solidão porque não nos atrevemos a passar tempo com os outros sem fazer nada. BBC News Mundo, (2023). Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl7x1w17q1vo>. Acesso em: 10/12/2024.
BIERNATH, André. Por que a solidão virou uma das grandes preocupações de saúde do século 21. BBC News Brasil em Londres, (2023). Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd145rv214ko>. Acesso em: 09/12/2024.
CALLIARI, Marcos. Brasil fica em 1º lugar entre 28 países, em ranking dos que mais sentem solidão (2021). Disponível em: <https://www.ipsos.com/pt-br/brasil-fica-em-1o-lugar-entre-28-paises-em-ranking-dos-que-mais-sentem-solidao>. Acesso em: 15/12/2024.
COSTA, Ana G. EUA vivem crise de solidão tão nociva à saúde quanto 15 cigarros por dia. Disponível em: <https://www.terra.com.br/byte/eua-vivem-crise-desolidaotaonocivaasaudequanto15cigarrospordia,8750ff210ace237f6c07654a98d4668a7jakenij.html>. Acesso em: 02/12/2024.
DE ALMEIDA, Thiago. Solidão, Solitude e a Pandemia da COVID-19 (2020). Disponível em: <https://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v24n2/v24n2a02.pdf>. Acesso em: 28/11/2024.
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DE OLIVEIRA, Kaynã. Japão cria “Ministério da Solidão” para lidar com aumento de taxas de suicídio na pandemia (2021). Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/japao-cria-ministerio-da-solidao-para-lidar-com-aumento-de-taxas-de-sucidio-na-pandemia/>. Acesso em: 10/12/2024.
LEMOS, Ronaldo. Vivemos uma epidemia de solidão (2024). Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2024/11/vivemos-uma-epidemia-de-solidao.shtml>. Acesso em: 10/12/2024.
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SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica,2008.